Contitos Perturbados #5 – Admirável sinceridade

Manhã ensolarada. Márcio entra no elevador e dá de cara com um vizinho novo no prédio.

–  Dia de merda.

–  Todos são assim. Mas devem ser piores para você, que parece um babaca covarde.

– Seu topete cheio de gel exala presunção e problemas mal resolvidos com a mãe.

– Ninguém é bem resolvido com a mãe, mas pelos seus pensamentos, você deve ter sido esmagado por todas as pessoas que já conheceu.

– Ficou ofendidinho com o topete, eu ouvi!

O elevador para no térreo. Os dois se despedem e seguem seus caminhos. A rua é arborizada e bem cuidada, Márcio monta em sua bicicleta e pedala para seu trabalho. Sorri, respirando o ar puro e gostoso da cidade. A paisagem é vasta e bela, as pessoas andam bem vestidas e alimentadas. Não há pobreza ou violência, é um admirável mundo bacana demais da conta, com ciência avançada, muita natureza e saúde.

Márcio chega ao escritório.

– Tudo bem, seus idiotas?

– Claro que não, anta, nunca tá tudo bem! – responde Victor, o chefe, seco e mal humorado.

– Eu sei, chefe, já vinha ouvindo vocês pensando em suas crises do corredor.

– Sei disso, ouvi você pensar isso agora. Ninguém mais fala “tudo bem?”, porque a resposta é sempre não.

Márcio senta-se em uma cadeira com computador. Depois de duas horas, seu expediente termina, ele se levanta e vai embora junto com seus colegas. Todos entram em um bar ao lado do prédio e se servem de uma cerveja barata e gostosa na geladeira do lugar. Ninguém brinda. Todos ofendem uns aos outros com julgamentos e xingamentos e expõem questões existenciais ao longo de três horas de bebedeira.

– Todo dia a gente vai para esse trabalho que não significa nada para mim e depois volta para casa e… no outro dia a mesma coisa! – Cláudio começa a chorar.

Todos na mesa ficam emocionados e caem no choro também. Sidney começa a berrar em meio às lágrimas.

– E vocês sabem que não gosto de nenhum de vocês! Já devem ter ouvido eu pensar uma zilhão de vezes. Vocês são ridículos como eu… Escravos das relações de trabalho e filhinhos da mamãe assustados que não conseguem alguém que ame-os por quem são!

– A gente sabe!! – todos gritam em coro. Alguns caem da cadeira e apagam. Victor vomita no chão. Tudo como de praxe.

Márcio chega em casa. Deita no sofá e pega um porta-retratos com uma foto sua de criança. O rapaz lembra como o mundo já foi muito pior… Como teve uma época em que a cidade era suja, poluída e desigual e ninguém conseguia ler os pensamentos uns dos outros. O mundo de agora pode não ser perfeito, mas pelo menos é sincero.

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